quinta-feira, 27 de julho de 2023

UM DIA NA PRESENÇA DOS PÁSSAROS


                O céu naquelas cercanias estava meio com as nuvens algo turvas, no tempo de um inverno renitente, o Sul, o cristal do Sul, que por vezes esconde as rachaduras impuras de um tempo onde nem sempre tudo são as flores, que no inverno supõem-se bem mais raras... Amanhecia. José Carlos estava se aprontando para o trabalho, pescava na orla, era seu trabalho por hora, e sua esposa, Fátima, não estava para bons bofes. José, meio que de construção de fama algo tardia, se recuperava de um alcoolismo, no que Fátima o havia internado e ele fatigara com os remédios para a compulsão, mas largara efetivamente, pelo visto de seus poucos ainda dias, o vício tremendamente compulsivo que o abraçara durante pelo menos o período em que ela o encontrara, já quando haviam começado a partilhar do mesmo teto, aliás, dela, na mesma orla daquela cercania, um bairro operário antigo, já desestruturado, com os antigos tijolos de construções e novas arquiteturas meio de improviso, construções de casas simples, uma periferia na orla, como tantos diziam, apesar da beleza inequívoca do lugar, e de ainda a água lodosa oferecer da pesca o sustento de muitos.

                O café, simples, meio do pão já emurchecido, os trocos de Fátima, já os empregara sempre nas manhãs possíveis, mas naquele seu cansaço da faxina do dia anterior a punha na enxerga de si mesma, as vassouras recolhidas no desvão da porta dos fundos, e a roupa algo tíbia para se lavar, tudo meio nada acumulado, que ela perfizera contas, cuidava, e José ainda na recuperação, não era fácil ainda mesmo... Pudera, ontem ele trouxera três robalos, ainda não possuía a tarrafa, mas de um molinete emprestado fizera o comer de dois dias para as refeições quentes. As ostras haviam pequenas nas rochas, e o formão de José cantava, por outros longos dias, nos dias de bebedeira, ele perdia a conta da mescla com a antiga companheira: a cachaça! Carne era rara, nos sábados Fátima ia no açougue comprar nacos de acém, com a gordurinha, comprava da farinha Marlete, de boa procedência, de esquentar na boca, como as dos engenhos antigos da ilha, quem dera, a boa farinha de mandioca com peixe frito, e era posta a engrenagem do pirão, por vezes... Fátima estava meio gorda, lembrava aqueles ídolos colombianos que simbolizam a mãe terra, da terracota, matéria prima quiçá de suas carnes zelosas. Era a melhor companheira que José, pela graça do bom Deus, podia contar em sua vida, posto estava inteiro, já não mais meio morto, mais vivo, e surpreendido pela vida, essa vida que via agora quando saía pela orla do lugar, se encontrando com os pássaros, naquela surpresa daquele dia pontuado o céu pelo branco das gaivotas, e o negro dos urubus. Quem dera pudesse José usufruir dos voos taciturnos dos seus sonhos, mas o sonho era a realidade, e esta havia sido melhor, o internamento fora duro, o lençol de contenção arrebatador, a enfermagem não brincava no ponto, e a disciplina da saúde impunha a restrição nada afetiva para que ele se recuperasse na marra, o serviço público não era brincadeira em tempos de crise, pois a medicação não saía nada barata ao Governo.

                Fátima, em seu olhar rasgado de índia carijó, supunha ser apenas uma dona daquilo que era seu, e seu companheiro era apenas um homem, não via além disso, um homem que ela deixava dormir a seu lado, quando lhe permitia um abraço ou carinhos mais amplos... Ele já amava, na amplitude de seu próprio restauro, a dimensão da liberdade, e via nas carnes da companheira seu refúgio quase absoluto, dias que lhe fossem permitidos, que a patroa mandava, lhe dava a rédea curta ainda, e ele obedecia, como todo ex adicto deve proceder, ao bem de não recair na companhia algo nefasta que ainda sói acontecer em sua vida, nas andanças ao mercado, ou quando passava rente ao bar, no que ela apenas lhe dizia: se cair, suma do meu mundo, ele consentia, temeroso, aliás, apavorado em perder a joia preciosa de seus dias tão nublados como aquele, quando o veneno do desejo ainda lhe surpreendia na memória do gosto e da possibilidade. Por isso tecia a companhia dos pássaros manancial que não compreendia antes, mas os encontrava como os parceiros de sua vida, e um como que despertar lhe apontava direções inauditas, em cada gesto de asa branca na rocha, em cada competição alada nos nichos, em cada areia, como que pisada anteriormente, navegava caminhando, e o molinete lhe respondia se Fátima ficaria mais feliz com o resultado do seu trabalho, agora razão quase atávica de sua existência de homem já não mais solitário.

                Pensava no tempo das conversas, do murundum, no cascalho em que passara no catar as latas de alumínio, naqueles sacos negros quase vazios, os pés de sandálias gastas de tanto andar para a reciclagem, e quase na queda nas pedras do crack, coisa que não chegara a acontecer, Deus que o valha, pensava, estou livre, pudera! Isso se lhe passara em vida, e a vida lhe surpreendera, quando saíra a pensar naquela manhã, a companhia dos pássaros, a vida, a forma em que as nuvens já abriam passagem naquele frio de inverno para o azul de um céu nítido, que agora até o seu olhar via com mais nitidez, e os pensamentos, já mais organizados, faziam sentir na mão o toque em que a linha já se esticara, e o peixe era dos grandes... Começara bem, a sorte se anunciava, e Fátima ficaria mais feliz, e isso era seu presente, de um homem desempregado formalmente, mas pescaria mais e mais, e isso traria seu presente da Natureza, e na sua recuperação antes mais inquieta encontrava a placidez e felicidade da comunhão com o planeta, representado pelo quinhão daquele recanto que a muitos com seus carros caros não passava de uma parede de água onde iriam usufruir de dinheiro que muitas vezes jamais a procedência fosse tão honesta.

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