sábado, 4 de maio de 2024

O SONHO REMOTO


               Saberíamos melhor talvez a natureza de como pensar algo distante da realidade que nos tolhe se pudéssemos falar, como Freud aborda, da necessidade de se falar ao outro, ao ser que pensa, mas creio que a forma do si mesmo, de se estar presencialmente falando, do contato entre um ser e o outro é melhor do que procede nos tempos atuais, onde é recorrente o ser humano ter um contato maior com a realidade digital e projetar, ou praticamente sonhar delirantemente com imagens, sons, expectativas afetivas através dos displays que os meios conferem a tais possibilidades: por vezes um simples abraço afetuoso é mais raro do que aquele que denoda um contrato, ou um laço familiar quase estanque de afeto sincero...

               Quando na infância as crianças se reuniam frente aos quintais mais amplos de suas casas, quando a vida não era compulsoriamente dentro de edifícios e a rua não era um ambiente “hostil”, principalmente nas grandes metrópoles, as relações oníricas eram quase uma questão vivenciada em lócus por infâncias saudáveis, e as relações com os livros não eram pontualmente didáticas ou obrigatórias, mas questões onde se lia mais do que o que fazem com aparelhos de vídeo games hoje, com os computadores, ou mesmo usando-os sem um despertar de que esses mesmos meios podem se tornar um bom instrumento para que se desenvolvam, e não o mero resultado de que vão sonhar com um ser amado, já hoje mais crescidos, por através de contatos de redes sociais, ou mesmo sites de encontros, onde o que se depara no final com aquele que estava do outro lado antes, com o devido perfil, ou espécie de “self digital” não corresponde ao que se projetara sendo aquilo com o que sonhara.

               Até que ponto o mundo digitalizado que, na medida em que causa uma certa paranoia sistêmica com relação a uma sociedade aparentemente controladora e, por outro lado, amplia o leque de conhecimentos, não apenas acadêmicos, com os cursos remotos, ou EADs, mas igualmente no campo das artes e da pesquisa, onde a tecnologia, quando bem empregada sói reconstruir as estruturas... Mas, voltando, até que ponto esses fatos vão influir nos sonhos reais, no que se deposita no inconsciente, na percepção equivocada, nas enfermidades mentais, quando se faz uso de drogas ou álcool para que se aumente a performance nos trabalhos de homework ou mesmo nas empresas onde se contrata gente profissional com tarimba em sistemas, ou mesmo artistas gráficos, gerentes, etc, ou seja, como a vida das gentes em geral e sua psique lida com um mundo onde essas novas interfaces – agora inevitáveis – vão construir um ego que lide com a situação dos instintos, ou tudo o que signifique utilizar os meios digitais para que se construam possibilidades onde a própria sexualidade seja algo que não passe necessariamente pelo uso dos seres humanos como objetos, como meros instrumentos do prazer, como na sociedade de consumo facilitadora para quem possui boa posição social, ou mesmo as condições necessárias para se adquirir bons equipamentos e galgar degraus concretos rumo a uma vida afeita a realidades sexo-afetivas saudáveis...

               Quiçá possamos crer que o grande iceberg do inconsciente estará emergindo através das máquinas digitais, ou que os encantamentos de tipos de serviço quais gôndolas onde consumimos o prazer não estabelecerá um tipo de ameaça onde uma sociedade mundial realmente mais controladora subverta a normalidade psíquica mais autêntica no modal em que os instintos reprimidos acabem sendo solapados pelo consumo e a citada objetificação do ser? Talvez a resposta mais certa sobre as dúvidas seja no campo mesmo das dinâmicas do perscrutar-se o indivíduo, os grupos, a psicanálise enquanto ciência, a religião como religação do  ser com o cosmos, a noção de que não estaríamos sozinhos no universo, como a questão de Copérnico quando de sua assertiva, sobre não sermos o único planeta, a compreensão de que o criacionismo revisita seus conceitos a partir de Darwin, e que isso não faça de uma regressão a necessidade de um futuro mais obscurantista, quando os seres não abram espaço quase de um sonho remoto em que os deuses de outrora não sejam aqueles mitos, ou que fossem a linguagem de Lacan, ou os símbolos de Jung... No propósito de se ter um ser consciente não obste a fração de importância cabal de que a mesma consciência tende a ser a capacidade crítica do mesmo ser, e que as diferentes manifestações da Natureza e seus diálogos venham a engrandecer a percepção do homem enquanto criatura e criador, homo erectus e sapiens, meio orangotango, meio selvagem, mas com um ego controlador e contemporizador, meio mais sólido que permeia os instintos da mesma selva urbana em que por vezes se encontra com seu id e peculiar profundeza, e a semântica muito necessária no viés contemporâneo de um superego mais altruísta e reformista do caráter da personalidade humana.

               Em síntese, por vezes não sonho mais, ou nunca mais teria me lembrado do último sonho e, quando acordo, vejo que parto a uma realidade quase onírica, onde o viés de uma poesia me remete, sem uma única substância a não ser a tela maravilhosa de um computador, a um universo pleno onde me encontro com uma força grandiosa que me move, e que quiçá fora apenas um gesto da arte, ou mesmo uma pequena imagem do que penso ser Deus.

              

Nenhum comentário:

Postar um comentário