Aquele
homem parecia incansável, mesmo quando dormia... Seu parecer sobre o mundo, no
entanto, o admoestava sobremodo, a sua mulher, já meio farta do que ele chamava
“missão” apenas o repreendia, nos dias em que ele mergulhava no copo quente do
uísque barato:
- José,
você não vê que as coisas não são como parecem? As coisas são, bem, são coisas
que você nem sabe discernir ao certo, e veja, quando eu casei com você fora
escolha minha, mas esperava que você se acertasse, e agora logo agora, me
acorda às quatro com essa estranha mania de projetos sem fundamento, e isso
tudo me põe amuada, tenho que cumprir com a escola logo mais às sete... Ele
sempre a interrompia, em seus devaneios etílicos:
- Você
não pode me suprimir em minha atitude, não se chama algo impensado, meus
projetos vão mudar algo no país, se me entendes, não creia, Mathilde, achar que
estou impressionado sempre com você, pois arranjaria outras madalenas menos
inquietas do que o que você se parece, minha flor de Andaraí reticente...
Mathilde
possuía uma vergonha íntima e quase secreta desse homem. Sabia-o meio insano,
megalômano, e que nada mudaria o ser posto nem projeto havia, nem projeção, nem
futuro, já vira o que ele realizava para si e pensava que o que realizava para
os “outros” não passavam de quimeras, e já acenava para um outro homem, pois o
seu companheiro já não lhe dedicava o mínimo respeito, e isso ela não consentia
dentro de si, todo esse ego falsificado de carteira obsoleta, pensava com seus
botões dentro das muralhas de suas inquietações, sabia de si, de sua nobreza, e
ele bebia, ficava túrgido, vermelho, ignorante, recusava o bom senso, estava em
uma profunda crise e nem imaginava estar. Para um aparente consolo, José aparecia
mais digno, fluente em seu humanismo, não via nele um abjeto não construtor,
como efetivamente era, nem algo sem fundamento, pois suas intimidades não eram
tristes como um fogo de brasas secas, mas aparentava um quase amor que nas
condições onde ela se encontrava antes, ele conseguira, bem ou mal, preencher
com uma presença masculina a ela de parecença válida, conforme, e isso era um
óbice que ela ignorava em seu íntimo!
- Saiba,
José, disse ela, que a vida não se resume em festivais...
-
Bastasse um mero soldadinho amador para prender esse cancioneirozinho de bosta!
- Não
seja tão rigoroso, olha que esse cantante possui talentos e enriquece a música
do país, não sejamos tão grotescos. Mas vá lá, não precisa me olhar com essa
fúria, parece estar com ciúme de alguém que realiza cultura, mas não, não falo
mais nada, meu caro, carece você de saber que nada nem ninguém pode trazer esse
tipo de reflexo que você carrega só porque no exercício de seu militarismo
convexo, porque lhe deram o que você chama de missão, há de fazer o oposto de
lutar pelas liberdades, ao menos de meus alunos, ao menos de mim, meu caro,
pois quero ter a mesma liberdade de levar ao conhecimento deles os livros que
achar bons apenas, e não trazer à tona o que você pretende regrar com um
conhecimento de gavetas lacradas e nunca utilizadas pela sensatez de seus
gestos.
Mathilde
olhava para seus adiantamentos de professora, seus programas de aula que iria
ministrar dali a horas curtas, pois para ela, concreta e efetivamente, seu
trabalho lhe trazia resultados e cumpria com todos diuturnamente, ergueu seus
olhos e viu algo que a impressionou:
José
Lacerda, seu esposo, estava emborcado no pequeno sofá, esquecera o livro caído
no chão, o copo de old eight estava virado em seu peito, e nem as pequenas
pedras de gelo ainda não totalmente derretidas sobre a sua camisa de quase
oficial, daqueles verdes desenganados pelas tentativas, o haviam acordado desse
torpor. A caneta esferográfica azul havia vazado em sua mão, e algo de um
abandono ridículo frente àquele que antes pensara ser um homem no mínimo com
certa fortaleza estava tão de frente a uma ilusão, que pensava que o sono do
fracasso de José andaria de mãos dadas com toda a manhã, e ela se lembrou que
ela haveria de pagar as contas com o dinheiro de que dispunha, e que desde
alguns meses tomara para si a responsabilidade da casa, crendo que porventura
não saberia o que fazer mais com aquele que agora via como um monte de carne
quase acéfalo, bruto, ridículo, no que pensara antes de dispor de sua cama para
levá-lo ao descanso, mas soube que o melhor caminho seria deixar para depois a
questão de uma separação que não procrastinaria, pois já tentara dissuadí-lo, não
das tentativas vãs de que abandonasse o álcool e a coca, mas igualmente, que
deixasse de pensar como aqueles que se dedicavam diuturnamente a convencer seu
homem de que ele estaria com a missão de derrubar coisas que não estavam mais
dento do escopo da realidade de uma esfera plausível, posto que muitos quiçá
estivessem pensando do mesmo modo, mas ela prosseguia sendo quem era, e não
acreditava mais que um homem que a estaria arrastando quase a uma exaustão
fosse tão boa companhia dentro da missão imposta a convenientes ingerências do
que José sempre chamara: estratégias para um "mundo melhor".
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